Resgatar o resgate
(por Gustavo Cardoso, no Público)
O modelo está esgotado e precisa de ser refeito e isso só pode ser
realizado com pessoas que o assumam, que conheçam porque falhou e que
estejam dispostos a criar os seus futuros e não por quem se sinta mais
confortável com o regresso ao passado, porque isso não vai acontecer.
A maioria das
pessoas está a ficar farta de ouvir falar em crise porque está a
vivê-la. Por isso, porque há-de alguém de querer ler coisas sobre a
crise?
Um argumento possível reside na frase seguinte: o que pode
motivar as pessoas em Portugal e no resto da Europa - sim, não estamos
sozinhos, mas jávoltaremos a isto - é que um qualquer indício de solução
seja apresentado.
No entanto, como essa solução não se
materializará por intervenção divina, mas sim por acção dos homens,
mulheres e crianças que habitam este território de mais de 500 milhões
de individuos, resta a cada um de nós contribuir à sua maneira para
encontrar as soluções. E este é um artigo sobre os primeiros passos para
sair da crise a partir do contributo que posso dar, o contributo de um
sociólogo formado gestor e que acha que há que compreender as razões da
crise, para de seguida tomar opções e depois passar às soluções que,
entretanto, foram sendo formuladas e experimentadas.
Em primeiro
lugar deixem-me partilhar algo que decorre de ter participado, tal como
centenas de milhares de portugueses, nas manifestações de 2 de Março:
estou farto de estar sequestrado!
E é assim também que a maioria
da população portuguesa (e também a europeia) se sente. Sequestrada
pelas decisões políticas e económicas sobre as quais não possui controlo
mas que se fazem sentir nas suas vidas.
Em segundo lugar,
deixem-me partilhar uma análise sobre o momento que vivemos a partir do
final de 2012, porque acho que o primeiro passo para abandonar este
estado de crise passa por ajudar a União Europeia a sair do erro em que
entrou, ou seja, resgatar o resgate, para salvar a Europa e, no caminho,
salvar também Portugal.
Esta análise passa, assim, por assumirmos o evidente, ou seja, que em primeiro lugar os representantes da troika que
nos visitam não contam para grande coisa pois estão ao nível de um
embaixador (com todo o respeito pelas suas funções) quando se reúne com
um líder de um dado país, pois a sua autonomia e capacidade limita-se às
instruções que lhe foram dadas e qualquer mudança, inovação ou
alteração implica ir perguntar à casa-mãe se ela dá licença para o
fazer.
É, também, igualmente necessário assumir uma outra coisa
que comporta algum desconforto, ou seja, que as instituições políticas e
do sector financeiro europeu e nacional não sabem o que fazer e que,
portanto, estão num processo de experimentação. Ou seja, estamos em
desgoverno continental na Europa, onde quem lidera não sabe se o que tem
feito leva ao que se pretende, ou se o que se passa tem algo a ver com
as acções que se tomaram – estamos assim no campo do desconhecido e
incerto (faço aqui nota que disse “instituições”e não governantes ou
gestores, pois hána governação e gestão ainda pessoas que têm noção do
desacerto em que nos encontramos e que tudo pode ainda acontecer entre a
melhoria e o desastre).
Passemos ao nível das evidências que nos
permitem argumentar que é necessário ajudar as instituições europeias a
serem resgatadas. As instituições europeias e nacionais do campo da
economia não são capazes de resolver a crise porque ainda não decidiram
realizar um mea culpa e em definitivo assumir que a economia é –
todas as economias são –cultura. Isto é, determinadas opções de
práticas inseridas em processos de produção, consumo e troca de bens e
serviços.
É a cultura que molda a economia. Quando há uma crise
sistémica, há um sinal de uma crise cultural, de não sustentabilidade de
certos valores como princípios orientadores do comportamento económico
humano. Assim, apenas quando, e se, mudarem valores culturais
fundamentais, podem emergir novas formas de organização económica e
instituições para assegurar a sustentabilidade da evolução do sistema
económico. A hipótese que aqui se partilha é a de que podemos estar num
período desses, de transição histórica.
Chegados a este ponto,
onde estão as evidências de erros de resgate e por que necessitamos nós
de resgatar os que nos quiseram resgatar e que – não tendo aparentemente
outra forma de lidar com o assunto – tentam ganhar tempo continuando a
exercer o resgate de Portugal (sim estou a falar da Comissão Europeia e
do Banco Central Europeu).
Como tive ocasião de escrever no livro
“Mudança e Rescaldo. As Culturas da Crise Económica”, poderia a União
Europeia ter apoiado Portugal em alternativa ao resgate? A resposta é
sim, poderia ter sido feito de outra maneira. Mas não foi.
Entretanto,
as instituições europeias perceberam o erro e pela prática o próprio
BCE o admitiu. O BCE poderia ter comprado os títulos portugueses, como
fez poucos meses depois com a Itália e a Espanha, em igual situação,
liderando uma intervenção que evitou o resgate em perspectiva. O resgate
de Portugal mostra, assim, o erro cometido pela UE e como as
perspectivas de cenários futuros sugeridas pelas agências de notação
financeira e postas em prática pelas instituições políticas e bancárias
da União Europeia minaram a recuperação económica e a soberania política
nacional.
O resgate de Portugal também mostra como a
esfera política da União Europeia sucumbiu aos mercados financeiros
desregulamentados. Mostra como o regresso da predominância da política
sobre a finança parece cada vez mais difícil de alcançar, dentro do
actual cenário.
É por tudo o que, atrás, foi exposto que o
resgate tem de ser resgatado sob pena de todos sucumbirmos neste
continente à impreparação que levou ao erro e à forma errada de
raciocinar institucionalmente e que os últimos 4 anos demonstram ser
inadaptada.
Não parece mais ser possível ninguém querer admitir
erros e portanto preferir continuar em modo resgate,
auto-sequestrando-nos pelas próprias instituições que não se reformam,
nem se deixam revolucionar por via da inovação que ainda resta dentro
delas, ou pela que se está a formar nas redes e nas praças públicas, à
procura de caminhos para a supremacia da política.
Pode-se sempre
argumentar que tudo isto não corresponde à realidade, que esta análise
está errada, que tudo corre como devia correr e que as pessoas e as
instituições reflectem isso. Eu contra-argumentaria que as instituições
na Europa se encontram num estado de nervosismo intermitente, ora acham
que tudo está a ir para o melhor, ora se sentem à beira do colapso
quando uma qualquer variável política, económica ou social não segue o
caminho expectável –pode ser o resultado de uma eleição, um
comportamento dos mercados, um protesto mais veemente, uma actuação de
um país externo, uma flutuação de uma moeda.
E as pessoas o que
pensam disto tudo? Acreditando nos dados do último Eurobarómetro (e eu
acredito na veracidade científica dos mesmos tal como o Eurostat e a
Comissão Europeia acreditam) o que a seguir se descreve é a Europa e o
Portugal onde hoje nos movimentamos - e o cenário não é agradável.
No
final do ano passado, 80% dos cidadãos da União Europeia não confiavam
nos partidos políticos e só33% confiava na União Europeia. Quanto à
confiança na Comissão Europeia só40% dos cidadãos europeus manifestava
confiança nela e, em média, na Europa (com excepção da Suécia, Finlândia
e Luxemburgo) não há nenhum governo em que mais do que metade dos
cidadãos confie –na realidade a média Europeia de confiança nos governos
está em 27% dos cidadãos e em Portugal é de 22%. Por sua vez, o Banco
Central Europeu tem apenas a confiança de 37% dos Europeus (na Alemanha
52% não confiam no BCE, um valor só superado pela desconfiança dos
Espanhóis, Irlandeses ou Gregos).
Ao mesmo tempo 75% dos cidadãos
da União classifica a situação económica da Europa como má ou muito má e
62% acha que o pior para o emprego está ainda para vir (variando entre
os 59% da Alemanha, os 68% da França ou os 79% de Portugal) e quanto à
avaliação da capacidade das actuais politicas em acção estarem no bom
caminho, para nos fazer sair da crise, apenas 41% da população dos 27
países manifesta uma opinião positiva.
Se pensarmos que a
Democracia é constituída a partir da assumpção de que "Eu" sou soberano e
que delego temporariamente a minha soberania nos meus representantes, o
TOP dos países onde mais de 50% dos cidadãos acha que "a sua voz não
conta no seu país" - e que portanto onde delegar não vale a pena -
leva-nos à seguinte conclusão sobre a zona euro: em todos os países com
resgate informal e formal (à excepção da Irlanda onde só48% acha que não
tem voz) mais de metade da população não acredita que seja ouvido pelos
decisores políticos.
Na Europa há apenas 49% de cidadãos que se
encontram satisfeitos com a democracia que têm, o que quer dizer que a
sociedade europeia está dividida exactamente ao meio, polarizada entre
duas visões (e tal varia entre os 70% de Alemães satisfeitos e os
insatisfeitos que, por exemplo, são 74% dos Portugueses, 72% dos
Italianos ou 66% dos Espanhóis).
Mas há também boas notícias, os
cidadãos europeus parecem saber que caminho seguir para sair da crise.
Pois 89% dos cidadãos está em acordo com a necessidade de introduzir
mudanças, só que esse caminho parece não estar a ser praticado pelos
governos e pela União. Senão vejamos, 90% dos cidadãos acha que os
Estados devem trabalhar em conjunto, 81% acham que o défice público e a
dívida devem ser reduzidos mas que, para a melhoria das economias
europeias, se deve em primeiro lugar dar prioridade à melhoria da
educação e formação profissional, facilitar a criação de empresas,
aumentar a investigação científica e facilitar o crédito às empresas.
Os
cidadãos da zona Euro apoiam a criação de Eurobonds na União Europeia,
sendo a Bélgica o país mais a favor e a Alemanha o mais contra - os
únicos países em que há mais de 50% de cidadãos contra são a Finlândia e
a Alemanha, e o “não” ganha apenas com 47% na Áustria e na Estónia.
Entre taxar as operações financeiras e taxar os lucros dos bancos, os
cidadãos escolhem esta última com 81% de aprovação.
Se fosse
pedido aos cidadãos para desenharem cinco políticas económicas para
sairmos da crise eles responderiam pela seguinte ordem: modernização do
mercado de emprego (81%); economia verde (74%); ajudas à indústria
(72%); melhoria da qualidade do sistema de ensino superior (71%) e
aumento das verbas de investigação científica (63%).
Por isso, o
repto a todos nós (mesmo assumindo o perigo da análise) é assumir que as
instituições que herdámos já não funcionam, pois só assim a crise pode
ser ultrapassada.
As pessoas na Europa sabem-no, as populações
dos países em resgate informal e formal sabem-no, as pessoas nas
instituições de governo e financeiras sabem-no. O modelo está esgotado e
precisa de ser refeito e isso só pode ser realizado com pessoas que o
assumam, que conheçam porque falhou e que estejam dispostos a criar os
seus futuros e não por quem se sinta mais confortável com o regresso ao
passado, porque isso não vai acontecer.
O primeiro passo é mesmo
resgatar o resgate, para se poder resgatar a economia e a política e
agindo já para que tal possa ainda ser feito em democracia na Europa.
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